Marta acordou cedo, foi ao banheiro, lavou o rosto e andou cuidadosamente até a porta. Apalpou a parede até encontrar o molho de chaves que estava pendurado num ganchinho de metal, tateou as chaves e logo encontrou a de formato circular que estava procurando. Ela havia perdido a visão gradativamente ao longo dos anos, e hoje tudo o que o que via era uma enorme mancha negra. Desceu as escadas devagar se apoiando no corrimão de metal do lado esquerdo. Tateou novamente para encontrar o botão que abriria a portaria. Achou. Do lado de fora, com certa facilidade, abriu sua caixa de correio e pegou o jornal que estava embalado numa sacola plástica. Ouviu passos de alguém vindo, calçava chinelos.
- Oi, dona Marta.
- Você está outra vez atrasada, Soninha. Já é a terceira vez só nessa semana.
- Desculpe-me, dona Marta. A senhora não vai acreditar, o ônibus que eu peguei bateu saindo do terminal. Aí foi aquela loucura só, né, criança chorando, o motorista berrando. Tive que descer e esperar o próximo, não teve outro jeito.
- Sei.
Marta não acreditava em uma só palavra de Soninha, afinal de contas ela já havia usado aquela desculpa nas duas semanas anteriores, mas tinha pena da moça, perdeu a mãe cedo e nunca tinha visto o pai na vida. Foi muito bem indicada pela agência de empregos, e no final das contas deixava a casa um brinco.
No apartamento, Marta arrumava a mesa do café, sabia que já estava quase na hora de Raul acordar e gostava de agradar o marido. Fez pão com queijo e presunto e leite com achocolatado, sabia que ele gostava. Enquanto isso, Soninha arrumava o quarto de bagunça vestindo uma micro saia e um top desbotado. Ela é do tipo gostosinha de subúrbio, morena jambo, cabelos ondulados, boca avermelhada e um traseiro de parar o trânsito.
O despertador de Raul tocou às nove horas, foi golpeado e caiu sem pilha no chão de piso frio. Ele se levantou e andou arrastando os pés até o banheiro, levantou a tampa, errou o primeiro jato de urina e sujou chão, voltou ao alvo e terminou dando uma bela sacudida no pau. Na pia, lavou o rosto e se admirou por um tempo no espelho. Gostava de se ver quando acabava de acordar, se achava parecido com um ator famoso de filmes de ação o qual ele nunca procurou saber o nome. Seguiu até a sala onde cruzou com Soninha no corredor, sem hesitar deu uma bela de uma apertada na bunda da moça que respondeu com um sorrisinho canalha, esses de canto de boca.
- O café tá pronto, Marta?
- Bom dia, Raul, está pronto sim, vamos tomar café na mesa hoje?
Raul retrucava com algumas caretas imitando o que ela havia dito com deboche.
- Coloca num prato que eu vou comer aqui no sofá.
- Não prefere comer na mesa?
- Se eu preferisse estaria sentado aí.
Raul pegou o prato e o copo de suco, se sentou no sofá e ligou a TV, comia feito um bárbaro medieval enquanto Marta, desapontada, mastigava delicadamente um pedaço de queijo branco e mexia com um colherzinha de sobremesa na xícara de café. Após sujar boa parte do sofá, Raul colocou o prato no chão e se esparramou, só iria trabalhar depois do almoço e estava ansioso para o jogo da seleção que logo iria começar.
Soninha era espevitada, tinha um fogo entre as pernas. Já se atracava com seu chefe há meses, e bem debaixo do nariz de Marta. E não iria ser diferente naquela dia, pegou sua flanela e foi logo limpar o móvel da sala, se agachou no chão e ficou de quatro com o traseiro virado para Raul, sua saia era minúscula, e ela sabia disso. Passava o pano enquanto empinava a bundinha, virava para trás e olhava com um olhar provocante pra Raul. Esse já estava com a mão por dentro do samba-canção em frenesi, espalhando minutos depois, seu sêmen por todos os cantos. Para os dois Marta era apenas mais um objeto inanimado na sala, frio e sem sentimentos.
Marta esbarra propositalmente na caixa de leite, que escorre pela mesa até cair no chão. Todos se assustam. Com o braço direito ela derruba todos os objetos da mesa. Ela está furiosa.
- Vocês pensam que eu sou o quê? Seus vermes malditos!
Vocês acham que eu não sei a porra que vocês fazem aqui, nesse maldito apartamento esse tempo todo.
Marta está histérica.
- Você, sua puta desgraçada. Eu te ajudo há quantos anos? Me diz! Há quantos anos? Sua vaca filha de uma puta.
- Você está louca, Marta? O que acha que estamos fazendo?
- Você acha o que, Raul? Que eu sou idiota? Que eu sou retardada? Você é mesmo um escroto burro. Eu sou cega, mas eu escuto, eu sinto cheiro, sinto o cheiro do sexo nojento que vocês fazem, e imagino a cara de prazer que vocês têm de zombar de mim, de gozar de mim. Seus filhas da puta escrotos!
Marta pega o jornal que ainda está embalado em cima da mesa, tira uma arma que nele está escondida e mira em direção ao vazio da sala. Sua mão está tremendo.
- Marta, pelo amor de Deus, o que você vai fazer?
- O que eu vou fazer? Eu vou matar vocês, Raul, é isso que eu vou fazer.
Dois tiros acertam a parede do fundo da sala.
- Não, Marta, pelo amor de Deus, não!
Mais três tiros são disparados.
Marta estava chorando, tinha nojo de sua própria vida, ajoelhou-se no chão e levantou a arma apoiando o cano embaixo do queixo. Por minutos lembrou-se de ser criança e estar sentada num balanço de parque em um dia frio de outono, as folhas amarelas esbarravam no seu pé, ela sorria, havia pássaros e borboletas, e ela era embalada por alguém em que podia confiar, alguém que sonhava encontrar novamente, lembrou do tempo de escola, dos banhos de chuva e de sentar no colo de sua avó na cadeira de balanços para ouvir histórias, do sabor do beijo do primeiro namorado, da intensidade das cores, dos antigos amores e das luzes. Fechou os olhos, mesmo não podendo enxergar, estava pronta. Apagou-se.
ilustração: Radael Jr.
10 comentários:
mandou bem, Teo.
mora um psicopata dentro do teo :)
parabéns, chuchu. seus textos são violentamente bons.
beijo
Aprecio o seu gosto pela morte! ¬¬
hehe... ótimo texto, Téo!
O história está muito boa, brother. Curti mesmo.
...mas você continua sendo um bosta.
Se isso virar um curta, adivinha quem vai ser o Raul, que é aquele que morre no final? Quem? Quem?
Poxa cara, isso é uma prova de quem acha que está sendo esperto e que ninguém desconfia....eu não sou cego cara, mas sei bem como é imaginar e sentir que está sendo traído por quem a gente no momento ama e isso é dolorido demais cara, realmente da vontade de matar um ou tirar a própria vida, mas graças a Deus aprendi que sou melhor que isso e evolui muito nas costas de quem estava se aproveitando da minha boa vontade...você como sempre tem belos roteiros para escrever, e me sinto lisonjeado em poder ler e comentar mais uma vez que vc está de parabéns meu amigo....
Boa! Merece um bom tapa de felicidade. Mais um conto com jeito pra exercitarmos a linguagem de curta. Parabéns pelo trabalho.
"Na pia, lavou o rosto e se admirou por um tempo no espelho. Gostava de se ver quando acabava de acordar, se achava parecido com um ator famoso de filmes de ação o qual ele nunca procurou saber o nome."
Boa essa!
Como havia dito a tempos, tinha certeza que iria ficar muito bom nisto e ralmente ficou. Adoro vir aqui e me deparar com todas as coisas que envolvem este blog
Grande abraço
Nossa Teo, arrasou. Consegui até ver a cena, tim tim, por tim tim.
Bj.
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