quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Laços de Sangue

Estávamos eu e você naquele carro, sabe-se lá de que ano, muito menos de que marca. A estrada tinha poucas curvas, e a paisagem era tão bonita que era difícil de acreditar ser real. Minha poltrona estava reclinada e eu encostava os pés no vidro da frente, e ele logo se embaçava e você me olhava com um olhar irritado, o suficiente para me fazer entender a mensagem. O silêncio era tremendo, um longo e profundo calar que só fazia-se ouvir motor e pneu em atrito com o asfalto. O céu era de um tom azul, com algumas partes em rosa claro, havia nuvens carregadas ao longe, que denunciavam vir chuva no caminho. Eu continuava em silêncio, ouvindo aquela canção de um homem norte americano que balbuciava palavras sobre uma melodia levada por um ukulele.

Você sem que eu imaginasse soltou uma palavra, e era sobre uma indústria a qual havíamos passados a uns quinhentos metros atrás, me disse que o dono era antigo proprietário de um sítio pequeno e que com uma visão de futuro e empreendedora construiu todo aquele patrimônio. Eu fingi não me importar, dei com os ombros e continuei a correr os olhos na estrada esperando o próximo assunto. O gelo realmente tinha se quebrado, e você agora já tagarelava sobre raças de gado, piscicultura em represas, motoristas barbeiros, pontes, atalhos, puteiros escondidos, formas de se ganhar mais fácil no jogo de damas, sobre ter tocado clarinete em uma banda e até mesmo de ter viajado de bicicleta em cinco pessoas durante três dias sem rumo algum e por mais que eu quisesse fingir não estar nem ai, meus ouvidos estavam absolutamente atentos a cada palavra.

Gota a gota uma pequena chuva se tornou uma tempestade e não enxergávamos um palmo além do vidro, você estacionou. Viramos a fita que tocava no som, a música era desconhecida pra mim, mas parecia algo meio folk-rock. Não demorou mais do que trinta minutos e já estávamos de volta na estrada, eu abri todo o vidro e você me olhou surpreso, estiquei a mão para o lado de fora do vidro e as gotas batiam na palma e escorriam aos poucos, sentia uma sensação de ter a mão fuzilada por minúsculas partículas que não causavam dano algum e ao mesmo tempo impressionado por voltar a mão para dentro do carro e ver que ela permanecia seca. Você é claro me explicou todas as possíveis teorias para que aquilo ocorresse e eu dei com os ombros sem me importar. Avistamos um posto ao longe, e eu olhei nos seus olhos pelo espelho retrovisor, você fingiu não ver, mas eu insisti, apontei e te pedi para parar. O posto parecia estar inabitado há séculos, lembrava velhos filmes de faroeste, cidades fantasmas ou desertas. Havia uma espécie de bar, e atrás do balcão um velho escutava uma música caipira num rádio de madeira numa das poucas rádios que deviam alcançar o local. Tomamos um café amargo, trocamos uma ou duas palavras e voltamos para o carro.

Na época, eu devia estar completando doze anos, me achava o dono da razão e nunca imaginaria o quão bom são as suas histórias, suas formas de interpretar as mais diversas situações, contornando tudo com um humor sincero e nada exagerado. Vi isso a tempo de ainda poder aproveitar isso tudo com você, te roubar emprestado todo seu conhecimento, imaginar suas histórias, viajar com os seus sonhos, viver na sua vida. Afinal somos filho e pai, dividimos nossas vidas.