quarta-feira, 17 de junho de 2009

Branco como leite




Marta acordou cedo, foi ao banheiro, lavou o rosto e andou cuidadosamente até a porta. Apalpou a parede até encontrar o molho de chaves que estava pendurado num ganchinho de metal, tateou as chaves e logo encontrou a de formato circular que estava procurando. Ela havia perdido a visão gradativamente ao longo dos anos, e hoje tudo o que o que via era uma enorme mancha negra. Desceu as escadas devagar se apoiando no corrimão de metal do lado esquerdo. Tateou novamente para encontrar o botão que abriria a portaria. Achou. Do lado de fora, com certa facilidade, abriu sua caixa de correio e pegou o jornal que estava embalado numa sacola plástica. Ouviu passos de alguém vindo, calçava chinelos.

- Oi, dona Marta.
- Você está outra vez atrasada, Soninha. Já é a terceira vez só nessa semana.
- Desculpe-me, dona Marta. A senhora não vai acreditar, o ônibus que eu peguei bateu saindo do terminal. Aí foi aquela loucura só, né, criança chorando, o motorista berrando. Tive que descer e esperar o próximo, não teve outro jeito.
- Sei.

Marta não acreditava em uma só palavra de Soninha, afinal de contas ela já havia usado aquela desculpa nas duas semanas anteriores, mas tinha pena da moça, perdeu a mãe cedo e nunca tinha visto o pai na vida. Foi muito bem indicada pela agência de empregos, e no final das contas deixava a casa um brinco.

No apartamento, Marta arrumava a mesa do café, sabia que já estava quase na hora de Raul acordar e gostava de agradar o marido. Fez pão com queijo e presunto e leite com achocolatado, sabia que ele gostava. Enquanto isso, Soninha arrumava o quarto de bagunça vestindo uma micro saia e um top desbotado. Ela é do tipo gostosinha de subúrbio, morena jambo, cabelos ondulados, boca avermelhada e um traseiro de parar o trânsito.

O despertador de Raul tocou às nove horas, foi golpeado e caiu sem pilha no chão de piso frio. Ele se levantou e andou arrastando os pés até o banheiro, levantou a tampa, errou o primeiro jato de urina e sujou chão, voltou ao alvo e terminou dando uma bela sacudida no pau. Na pia, lavou o rosto e se admirou por um tempo no espelho. Gostava de se ver quando acabava de acordar, se achava parecido com um ator famoso de filmes de ação o qual ele nunca procurou saber o nome. Seguiu até a sala onde cruzou com Soninha no corredor, sem hesitar deu uma bela de uma apertada na bunda da moça que respondeu com um sorrisinho canalha, esses de canto de boca.

- O café tá pronto, Marta?
- Bom dia, Raul, está pronto sim, vamos tomar café na mesa hoje?

Raul retrucava com algumas caretas imitando o que ela havia dito com deboche.

- Coloca num prato que eu vou comer aqui no sofá.
- Não prefere comer na mesa?
- Se eu preferisse estaria sentado aí.

Raul pegou o prato e o copo de suco, se sentou no sofá e ligou a TV, comia feito um bárbaro medieval enquanto Marta, desapontada, mastigava delicadamente um pedaço de queijo branco e mexia com um colherzinha de sobremesa na xícara de café. Após sujar boa parte do sofá, Raul colocou o prato no chão e se esparramou, só iria trabalhar depois do almoço e estava ansioso para o jogo da seleção que logo iria começar.

Soninha era espevitada, tinha um fogo entre as pernas. Já se atracava com seu chefe há meses, e bem debaixo do nariz de Marta. E não iria ser diferente naquela dia, pegou sua flanela e foi logo limpar o móvel da sala, se agachou no chão e ficou de quatro com o traseiro virado para Raul, sua saia era minúscula, e ela sabia disso. Passava o pano enquanto empinava a bundinha, virava para trás e olhava com um olhar provocante pra Raul. Esse já estava com a mão por dentro do samba-canção em frenesi, espalhando minutos depois, seu sêmen por todos os cantos. Para os dois Marta era apenas mais um objeto inanimado na sala, frio e sem sentimentos.

Marta esbarra propositalmente na caixa de leite, que escorre pela mesa até cair no chão. Todos se assustam. Com o braço direito ela derruba todos os objetos da mesa. Ela está furiosa.

- Vocês pensam que eu sou o quê? Seus vermes malditos!
Vocês acham que eu não sei a porra que vocês fazem aqui, nesse maldito apartamento esse tempo todo.
Marta está histérica.

- Você, sua puta desgraçada. Eu te ajudo há quantos anos? Me diz! Há quantos anos? Sua vaca filha de uma puta.
- Você está louca, Marta? O que acha que estamos fazendo?
- Você acha o que, Raul? Que eu sou idiota? Que eu sou retardada? Você é mesmo um escroto burro. Eu sou cega, mas eu escuto, eu sinto cheiro, sinto o cheiro do sexo nojento que vocês fazem, e imagino a cara de prazer que vocês têm de zombar de mim, de gozar de mim. Seus filhas da puta escrotos!

Marta pega o jornal que ainda está embalado em cima da mesa, tira uma arma que nele está escondida e mira em direção ao vazio da sala. Sua mão está tremendo.

- Marta, pelo amor de Deus, o que você vai fazer?

- O que eu vou fazer? Eu vou matar vocês, Raul, é isso que eu vou fazer.

Dois tiros acertam a parede do fundo da sala.

- Não, Marta, pelo amor de Deus, não!

Mais três tiros são disparados.


Marta estava chorando, tinha nojo de sua própria vida, ajoelhou-se no chão e levantou a arma apoiando o cano embaixo do queixo. Por minutos lembrou-se de ser criança e estar sentada num balanço de parque em um dia frio de outono, as folhas amarelas esbarravam no seu pé, ela sorria, havia pássaros e borboletas, e ela era embalada por alguém em que podia confiar, alguém que sonhava encontrar novamente, lembrou do tempo de escola, dos banhos de chuva e de sentar no colo de sua avó na cadeira de balanços para ouvir histórias, do sabor do beijo do primeiro namorado, da intensidade das cores, dos antigos amores e das luzes. Fechou os olhos, mesmo não podendo enxergar, estava pronta. Apagou-se.

ilustração: Radael Jr.